Como emenda do 'orçamento secreto' apoiada por Hugo Motta foi parar em obra com produto de trabalho escravo

Haroldo dos Santos Alves na sala de sua casa

Crédito, Vitor Serrano

Legenda da foto, Haroldo dos Santos Alves, 59 anos, foi responsabilizado pelos trabalhadores, mas diz que não ganhou nada com o empreendimento e vive com menos de um salário mínimo.
  • Author, Luiz Fernando Toledo
  • Role, Enviado da BBC News Brasil a Juazeirinho (PB)

Aos 57 anos, Cláudio (nome fictício) relata já ter acumulado quase meio século de experiência no ofício de cortar pedras.

Ele diz ter trabalhado a vida toda, desde a infância, em diversos Estados, depois de aprender o ofício com os pais, até que chegou à Taperoá, no sertão da Paraíba, onde conseguiu trabalho em uma pedreira na zona rural.

Sem ter tido treinamento de empregadores, Cláudio não usava equipamentos de proteção, embora a atividade seja arriscada e inclua até mesmo o uso de explosivos. O objetivo final do ramo é produzir pedras do tipo paralelepípedo para serem usadas, principalmente, em obras de calçamento.

Quando não estava sob o sol cortando pedras, o trabalhador ficava alojado em um barraco improvisado no local, com chão de terra, estrutura de madeira rústica e coberta por lona e pedaços de plástico.

Depois de trabalhar nove horas por dia, dormia sobre pedaços de espuma velha ou bancos de carro improvisados como camas. Pertences dele e dos colegas ficavam espalhados pelo chão.

Os alimentos que comia eram mantidos ao ar livre e o preparo era feito em uma estrutura de pedra improvisada, no chão, com fogo e lenha.

Como não havia banheiro, fazia suas necessidades no mato. Já o banho era tomado em poças formadas pela chuva sobre as pedras.

As condições de trabalho a que ele foi submetido, registradas por escrito, foram consideradas degradantes e seu empregador foi autuado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em junho de 2024, por manter trabalhadores em condições análogas à escravidão. Cláudio e outros três trabalhadores foram resgatados.

As pedras cortadas por ele integraram uma ponta da cadeia produtiva do que viria a ser chamado de maior projeto de pavimentação da história de uma cidade vizinha à pedreira, Juazeirinho, também na Paraíba, liderado pela prefeita da cidade e apoiado por um parlamentar que hoje é uma das mais poderosas autoridades do país: o deputado federal e presidente da Câmara dos Deputados Hugo Motta (Republicanos-PB).

Árvore com pedaços de pano que eram usados para fazer barraco, em uma pedreira em Taperoá, na Paraíba

Crédito, Vitor Serrano/BBC

Legenda da foto, Trabalhadores de pedreira na Paraíba se acomodavam e faziam refeições em barraco improvisado

De onde vieram os recursos?

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A BBC News Brasil identificou que a origem política do recurso que bancou o contrato com a empresa - a que comprou as pedras produzidas por trabalhadores em condições análogas à escravidão - está vinculada a dois parlamentares do mesmo Estado.

No Portal da Transparência o dinheiro é atribuído a uma emenda de relator, nome técnico do que ficou popularmente conhecido por orçamento secreto, dispositivo parte do Orçamento-Geral da União, cuja destinação é escolhida por parlamentares sem transparência, a partir de acordos políticos e cuja publicidade fica a critério do próprio parlamentar.

Depois de determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso ou a divulgar o nome de quem apoiou a indicação dessas emendas do relator, a partir de informações divulgadas pelos próprios parlamentares.

Em resposta enviada por meio da Lei de o à Informação à BBC News Brasil, a Câmara dos Deputados forneceu dois ofícios que pedem a liberação de recursos desta emenda a Juazeirinho, enviados pelo senador Veneziano Vital do Rego (MDB-PB), em 2024, e também pelo deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB), já como presidente da Câmara, em abril deste ano.

A instituição recomendou que a reportagem buscasse os parlamentares para maiores esclarecimentos, mas nenhum dos dois respondeu às mensagens por WhatsApp e e-mail. O espaço segue aberto.

A Prefeitura de Juazeirinho (PB), que recebeu os recursos, não cita o senador e diz que pediu os recursos diretamente a Motta, por meio de um ofício institucional.

O município disse ainda que a natureza técnica da emenda "não invalida a origem política da articulação, reconhecida publicamente pelo município e pelo próprio deputado Hugo Motta."

A prefeita da cidade, Anna Virginia Matias (Republicanos-PB), deu entrevistas e até homenageou em cerimônia os esforços do deputado, com direito a uma placa com o nome das ruas pavimentadas e o dele.

O apoio via emendas, em casos como este, funcionava assim: a prefeitura pede os recursos e o parlamentar faz a indicação ao orçamento (pode haver ou não apresentação de um ofício e há casos em que o acordo é apenas verbal).

O governo municipal, então, precisa apresentar um projeto que será avaliado pela Caixa Econômica Federal. Só depois de liberado é que o governo municipal pode fazer licitação e selecionar a empresa que fará a obra, a partir da melhor proposta.

Daí em diante, a responsabilidade pela fiscalização da obra é do município (e posteriormente dos tribunais de contas) — não da Caixa, nem do parlamentar, que apenas indica o destino dos recursos.

Ofício que pede liberação de emenda parlamentar em nome de Hugo Motta

Crédito, Câmara dos Deputados

Legenda da foto, Recurso que bancou obra de pavimentação é atribuído a uma emenda de relator

'Fazem uma mansão com o lucro que ganham no nosso suor'

Quando abordados pelos auditores, no ano ado, os trabalhadores disseram que o responsável pela pedreira era um homem chamado Haroldo. O auto de infração foi lavrado em seu nome. O nome dele também foi inserido na lista suja do trabalho escravo, um cadastro mantido pelo governo federal.

Haroldo dos Santos Alves, 59 anos, era um intermediário da cadeia de produção e afirma que nada lucrou com o empreendimento. Antes da entrevista, quem trocou mensagens com a reportagem por WhatsApp foi sua esposa – ele disse que não sabia escrever e que não completou o ensino fundamental.

A maior parte do lucro das vendas das pedras, segundo ele afirmou à BBC News Brasil, ia para a empresa que as aplicava em obras municipais, a Construtora Realizar, cujo nome não foi incluído na lista suja.

"Tem quase cinquenta anos que eu mexo com pedra e eu não tenho riqueza. O senhor [repórter] entrou na minha casa lá, é humilde."

Quase um ano se ou desde a operação, que embargou a pedreira, e Haroldo disse não ter conseguido regularizar a pedreira nem arrumar outros trabalhos, só bicos. "Moro de aluguel e vivo com menos de um salário [mínimo]."

Ele afirma que não se via como patrão dos trabalhadores resgatados e que trabalhou a vida toda no mesmo ofício.

"Somos cortadores de pedra. Cada cabra trabalha por si. Mas quando o pessoal [da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego] chegou aqui [na pedreira], usou o nome da pessoa que estava aqui", diz ele, que considera o desfecho da operação injusto: diz que outros enriqueceram às suas custas.

"Olha o lado da gente pequeno. Vejo o cabra hoje, dentro de um ano, dois anos, levanta uma mansão. Eu tiro 10 milhas de pedra [10 mil pedras], com essas 10 milhas o cabra faz uma mansão com o lucro que ganha no nosso suor. Nós só ganhamos a feira. De quem é aquele apartamento? Daquele engenheiro, daquele prefeito. E nós, vamos ficar onde");