Como emenda do 'orçamento secreto' apoiada por Hugo Motta foi parar em obra com produto de trabalho escravo

Crédito, Vitor Serrano
- Author, Luiz Fernando Toledo
- Role, Enviado da BBC News Brasil a Juazeirinho (PB)
Aos 57 anos, Cláudio (nome fictício) relata já ter acumulado quase meio século de experiência no ofício de cortar pedras.
Ele diz ter trabalhado a vida toda, desde a infância, em diversos Estados, depois de aprender o ofício com os pais, até que chegou à Taperoá, no sertão da Paraíba, onde conseguiu trabalho em uma pedreira na zona rural.
Sem ter tido treinamento de empregadores, Cláudio não usava equipamentos de proteção, embora a atividade seja arriscada e inclua até mesmo o uso de explosivos. O objetivo final do ramo é produzir pedras do tipo paralelepípedo para serem usadas, principalmente, em obras de calçamento.
Quando não estava sob o sol cortando pedras, o trabalhador ficava alojado em um barraco improvisado no local, com chão de terra, estrutura de madeira rústica e coberta por lona e pedaços de plástico.
Depois de trabalhar nove horas por dia, dormia sobre pedaços de espuma velha ou bancos de carro improvisados como camas. Pertences dele e dos colegas ficavam espalhados pelo chão.
Os alimentos que comia eram mantidos ao ar livre e o preparo era feito em uma estrutura de pedra improvisada, no chão, com fogo e lenha.
Como não havia banheiro, fazia suas necessidades no mato. Já o banho era tomado em poças formadas pela chuva sobre as pedras.
As condições de trabalho a que ele foi submetido, registradas por escrito, foram consideradas degradantes e seu empregador foi autuado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em junho de 2024, por manter trabalhadores em condições análogas à escravidão. Cláudio e outros três trabalhadores foram resgatados.
As pedras cortadas por ele integraram uma ponta da cadeia produtiva do que viria a ser chamado de maior projeto de pavimentação da história de uma cidade vizinha à pedreira, Juazeirinho, também na Paraíba, liderado pela prefeita da cidade e apoiado por um parlamentar que hoje é uma das mais poderosas autoridades do país: o deputado federal e presidente da Câmara dos Deputados Hugo Motta (Republicanos-PB).

Crédito, Vitor Serrano/BBC
De onde vieram os recursos?
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A BBC News Brasil identificou que a origem política do recurso que bancou o contrato com a empresa - a que comprou as pedras produzidas por trabalhadores em condições análogas à escravidão - está vinculada a dois parlamentares do mesmo Estado.
No Portal da Transparência o dinheiro é atribuído a uma emenda de relator, nome técnico do que ficou popularmente conhecido por orçamento secreto, dispositivo parte do Orçamento-Geral da União, cuja destinação é escolhida por parlamentares sem transparência, a partir de acordos políticos e cuja publicidade fica a critério do próprio parlamentar.
Depois de determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso ou a divulgar o nome de quem apoiou a indicação dessas emendas do relator, a partir de informações divulgadas pelos próprios parlamentares.
Em resposta enviada por meio da Lei de o à Informação à BBC News Brasil, a Câmara dos Deputados forneceu dois ofícios que pedem a liberação de recursos desta emenda a Juazeirinho, enviados pelo senador Veneziano Vital do Rego (MDB-PB), em 2024, e também pelo deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB), já como presidente da Câmara, em abril deste ano.
A instituição recomendou que a reportagem buscasse os parlamentares para maiores esclarecimentos, mas nenhum dos dois respondeu às mensagens por WhatsApp e e-mail. O espaço segue aberto.
A Prefeitura de Juazeirinho (PB), que recebeu os recursos, não cita o senador e diz que pediu os recursos diretamente a Motta, por meio de um ofício institucional.
O município disse ainda que a natureza técnica da emenda "não invalida a origem política da articulação, reconhecida publicamente pelo município e pelo próprio deputado Hugo Motta."
A prefeita da cidade, Anna Virginia Matias (Republicanos-PB), deu entrevistas e até homenageou em cerimônia os esforços do deputado, com direito a uma placa com o nome das ruas pavimentadas e o dele.
O apoio via emendas, em casos como este, funcionava assim: a prefeitura pede os recursos e o parlamentar faz a indicação ao orçamento (pode haver ou não apresentação de um ofício e há casos em que o acordo é apenas verbal).
O governo municipal, então, precisa apresentar um projeto que será avaliado pela Caixa Econômica Federal. Só depois de liberado é que o governo municipal pode fazer licitação e selecionar a empresa que fará a obra, a partir da melhor proposta.
Daí em diante, a responsabilidade pela fiscalização da obra é do município (e posteriormente dos tribunais de contas) — não da Caixa, nem do parlamentar, que apenas indica o destino dos recursos.

Crédito, Câmara dos Deputados
'Fazem uma mansão com o lucro que ganham no nosso suor'
Quando abordados pelos auditores, no ano ado, os trabalhadores disseram que o responsável pela pedreira era um homem chamado Haroldo. O auto de infração foi lavrado em seu nome. O nome dele também foi inserido na lista suja do trabalho escravo, um cadastro mantido pelo governo federal.
Haroldo dos Santos Alves, 59 anos, era um intermediário da cadeia de produção e afirma que nada lucrou com o empreendimento. Antes da entrevista, quem trocou mensagens com a reportagem por WhatsApp foi sua esposa – ele disse que não sabia escrever e que não completou o ensino fundamental.
A maior parte do lucro das vendas das pedras, segundo ele afirmou à BBC News Brasil, ia para a empresa que as aplicava em obras municipais, a Construtora Realizar, cujo nome não foi incluído na lista suja.
"Tem quase cinquenta anos que eu mexo com pedra e eu não tenho riqueza. O senhor [repórter] entrou na minha casa lá, é humilde."
Quase um ano se ou desde a operação, que embargou a pedreira, e Haroldo disse não ter conseguido regularizar a pedreira nem arrumar outros trabalhos, só bicos. "Moro de aluguel e vivo com menos de um salário [mínimo]."
Ele afirma que não se via como patrão dos trabalhadores resgatados e que trabalhou a vida toda no mesmo ofício.
"Somos cortadores de pedra. Cada cabra trabalha por si. Mas quando o pessoal [da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego] chegou aqui [na pedreira], usou o nome da pessoa que estava aqui", diz ele, que considera o desfecho da operação injusto: diz que outros enriqueceram às suas custas.
"Olha o lado da gente pequeno. Vejo o cabra hoje, dentro de um ano, dois anos, levanta uma mansão. Eu tiro 10 milhas de pedra [10 mil pedras], com essas 10 milhas o cabra faz uma mansão com o lucro que ganha no nosso suor. Nós só ganhamos a feira. De quem é aquele apartamento? Daquele engenheiro, daquele prefeito. E nós, vamos ficar onde");