Excesso ou justiça? As denúncias e polêmicas sobre as prisões dos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro

Crédito, Ton MOLINA / AFP
- Author, Mariana Alvim
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter,
*Correção às 19h de 02/08/2023: A versão original do texto afirmava que a similaridade das denúncias da PGR contra Alessandra Faria Rondon e Miguel Fernando Ritter era de 20%, segundo cálculo de uma ferramenta antiplágio. Entretanto, alertada pela defesa de um dos réus, a reportagem constatou que um dos arquivos baixados no sistema do STF incluía não apenas a denúncia, mas outro documento anexado de autoria da PGR, chamado de "Cota de oferecimento da denúncia". Em uma nova checagem, considerando apenas as denúncias (sem "Cota de oferecimento da denúncia"), a reportagem encontrou similaridade de 79% na ferramenta Plagiarism Checker X. Este novo valor foi inserido na reportagem.
Uma mãe chora ao abraçar duas crianças enquanto fala “saudade” repetidas vezes. Ao agachar, é possível ver uma tornozeleira eletrônica em sua canela.
Uma das crianças pergunta sobre o pai, e ela responde: “Seu papai tá chegando já já. Ele tá na missão”.
A mulher que aparece no vídeo, amplamente reproduzido nas redes sociais, é Alessandra Faria Rondon, de 39 anos. Ela foi presa em 8 de janeiro após invadir, com uma multidão, o Congresso Nacional em um ato contra o resultado das eleições presidenciais, em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi vitorioso, e Jair Bolsonaro (PL), derrotado.
Ré em uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), Alessandra foi solta no início de julho para responder ao processo em liberdade provisória, mediante algumas condições — como o uso de tornozeleira eletrônica, recolhimento domiciliar à noite e nos fins de semana e comparecimento todas as segundas-feiras ao fórum.

Crédito, Reprodução/Twitter
A empreendedora, dona de uma pizzaria em Cuiabá (MT) e de um trailer de lanches em Vitória da Conquista (BA), ficou seis meses presa, enquanto seu marido — também detido nos atos — segue na cadeia. O casal tem três filhos, dois deles menores de idade.
A filmagem do reencontro da mãe com os filhos pequenos após o tempo dela na prisão foi apresentada nas redes bolsonaristas como uma cena emocionante e um exemplo das injustiças que estariam ocorrendo contra aqueles que foram presos e que são acusados na Justiça pelo 8 de janeiro.
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O STF, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) afirmaram à BBC News Brasil que as prisões e os processos judiciais estão correndo dentro da normalidade (confira os posicionamentos ao longo do texto).
Em nota, o STF garantiu que os processos têm corrido com "garantia do contraditório e ampla defesa". "O Supremo Tribunal Federal vem garantindo o devido processo legal a todos os investigados pela Polícia Federal e denunciados pela Procuradoria Geral da República pelos gravíssimos crimes contra a Democracia ocorridos em 8/1."
Até a publicação desta matéria, a reportagem ainda aguardava um posicionamento do Ministério da Justiça sobre como o governo vem acompanhando os casos de 8 de janeiro e como avalia as denúncias de supostas violações.
Na postagem mais recente sobre o acontecimento em suas redes sociais, em 9 de julho, o ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou: "O dia 8 de janeiro ainda terá toda a sua terrível história contada. Os covardes que estão nas sombras serão revelados e julgados."
Ao defender a Constituição — cuja réplica sumiu nos atos de janeiro —, Dino acrescentou que a Carta Magna "venceu os vândalos, golpistas e terroristas".
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Já para a Associação de Familiares e Vítimas de 08 de janeiro (Asfav), criada no final de abril para auxiliar os acusados pelos atos e seus parentes, há uma série de "violações" aos direitos de réus e presos.
Em 12 de julho, a associação divulgou um relatório assinado por três advogados apontando, entre outros pontos, que os réus são alvo de acusações muito semelhantes, sem evidências do que cada um teria feito individualmente.
O documento também diz que a longa duração de algumas prisões preventivas, especialmente de idosos e mães de filhos pequenos, seria injustificada e excessiva.
Além disso, os réus enfrentariam condições precárias nas prisões e sua defesa estaria sendo prejudicada por não ter o a um inquérito mantido em sigilo.
"Não se trata nem de questões políticas, são violações de direitos. As pessoas dizem: ah, tem que pagar mesmo, porque Bolsonaro é um grosso, é um fascista... Mas não se trata dessas questões, se trata de que estão abrindo precedentes que depois podem ser usados contra qualquer um", diz a advogada Gabriela Ritter, presidente da Asfav cujo pai foi preso no 8 de janeiro em Brasília e permanece na cadeia.
As denúncias têm o apoio de alguns senadores e deputados no Congresso, onde uma comissão parlamentar mista de inquérito (MI) investiga quem organizou e financiou os atos de 8 de janeiro.
Uma audiência foi realizada em junho na Comissão de Segurança Pública do Senado para ouvir os familiares e defensores dos presos.
A audiência foi convocada pelo senador Eduardo Girão (Novo-CE), para quem os detidos são “presos políticos” que estão ando por situações vexatórias.
No último dia 21, Girão e mais três parlamentares entregaram um documento com denúncias ao embaixador do Brasil nas Nações Unidas, Sérgio Danese.
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Mas o plano de Girão de protocolar uma denúncia ao Comitê de Direitos Humanos ainda não foi concretizado. Segundo a assessoria de imprensa dele, não há previsão para isso ocorrer porque o parlamentar espera que, após o encontro com Danese, providências sejam tomadas tanto pelo Brasil quanto pela ONU.
O Itamaraty disse à BBC News Brasil que não cabe à pasta avaliar o mérito das denúncias no atual estágio, o que será feito pelos órgãos internacionais competentes, e esclareceu que o governo brasileiro responderá oportunamente se for demandado pela ONU, caso esta entenda que as denúncias são procedentes.
As denúncias não partem somente de parentes dos presos e de políticos que saíram em seu apoio.
O defensor público federal Gustavo Ribeiro, que coordena a defesa dos réus do 8 de janeiro e diz falar em nome de seus colegas da Defensoria Pública da União (DPU), disse à BBC News Brasil que vê “excessos” nas prisões e processos judiciais.
"Tem uma série de coisas completamente descabidas", diz Ribeiro, dando como exemplo prisões prolongadas de pessoas cuja culpabilidade não teria sido demonstrada.
Quem está preso?
Segundo o STF, 2.151 pessoas foram presas em flagrante a partir do dia 8 de janeiro em Brasília, tanto nos atos que levaram à depredação das sedes dos Três Poderes, quanto no acampamento bolsonarista em frente ao quartel general do Exército.
Após a identificação, 745 pessoas foram liberadas imediatamente, incluindo maiores de 70 anos, idosos com problemas de saúde e mulheres que estavam acompanhadas de filhos menores de 12 anos nos atos.
Atualmente, 251 pessoas (66 mulheres e 185 homens) continuam presas preventivamente — situação em que ainda não há condenação, mas a Justiça avalia que o acusado deve permanecer detido para garantir a ordem pública ou porque a liberdade dele pode trazer perigos, entre outros motivos listados pelo Código de Processo Penal.
De acordo com o STF, permanecem nesta condição aqueles acusados de crimes mais sérios.
Em linhas gerais, o caminho que levou presos em janeiro a se tornarem atualmente réus foi o seguinte: a PGR conduziu os inquéritos, fazendo investigações em parceria com a Polícia Federal, e ofereceu denúncias contra manifestantes ao STF.
As denúncias, então, foram julgadas como procedentes ou não pelo STF — nos casos em que elas foram aceitas, os investigados aram a ser réus em ações penais que correm na Corte.
Um levantamento da BBC News Brasil a partir de comunicados do STF chegou ao número de pelo menos 1.291 denúncias oferecidas pela PGR e aprovadas pela Corte.
"Esse é o sistema acusatório clássico: existe um órgão de acusação, o Ministério Público. Ele, junto com a polícia, faz a investigação e pede que o Judiciário tome determinadas medidas — por exemplo, que determine ou flexibilize a prisão”, explica Álvaro Jorge, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio.
O relatório da Asfav lista o que seriam irregularidades nos processos — a começar pelo próprio julgamento dos casos no STF, uma vez que a rigor apenas pessoas com foro especial por prerrogativa de função são julgadas desde o início ali. A crítica é endossada pelo defensor Gustavo Ribeiro.
"Muitas dessas pessoas que estão sendo processadas não têm foro. Por que estão no STF");